domingo, 7 de janeiro de 2018

O Reveillon - por uma peça de roupa

Cheguei em seu armário, me lembro bem, no dia 30 de dezembro de 2017. Um dia antes da virada do ano! Ela queria uma roupa nova para o reveillon! Estava feliz, pois havia me comprado para este que era um evento muito especial. Ela também estava feliz: vi seu sorriso pelo espelho ao me experimentar. 

Mas qual não foi minha surpresa ao chegar em seu armário e descobrir que eu não era a única peça comprada para os eventos de fim de ano. Haviam várias assim como eu: a camisa branca de marca para a festa da empresa, o short e a blusa de seda para ceia de natal, o macacão estampado para o almoço do dia 25, o biquini, a saída, a bolsa e o chinelo para a praia e eu, o vestidinho branco para o reveillon!

Eu era apenas mais uma peça no meio de tantas outras recém adquiridas. Mas o pior estava por vir - me avisaram! Depois do dia 01 de janeiro, havia sempre uma agitação em seu armário: "Liberar espaço no início do ano para ganhar mais roupas ano inteiro!". -Mas sou uma peça nova, não serei descartada tão cedo, retruquei! Não foi isto que aconteceu recentemente, me contaram - Ela dispensou várias peças com etiqueta! 

Entrei em pânico! Ela não podia fazer isto comigo, ela ficou tão feliz com minha aquisição! Me experimentou com vários acessórios, com várias sandálias, até decidir pelo chinelinho branco novo, claro. Até o penteado do cabelo ela fez combinando com meu estilo! Não, ela não me desapegaria assim tão facilmente - um vestido branco, soltinho, curtinho que serve para tantas ocasiões: reveillon na praia, praia, reveillon... estava tão transtornada que não conseguia pensar em outras ocasiões para ser usada. 

Comecei a entrar em pânico: entrar em uma sacola de loja é a maior alegria que podemos ter, mas entrar em uma sacola do desapego!? Ah! Isto era a maior injustiça! De branca fui perdendo a cor... sentia que seria a próxima! 

Pensei em todas as mãos por quem eu passei, desde o agricultor que semeou o algodão às costureiras que me fizeram. Dos vendedores da loja às mãos da minha nova dona. Não queria terminar meu destino em uma sacola. E sabe por que? Todas desconhecemos para onde vamos quando entramos em uma sacola de desapego. Nenhuma voltava para dizer para onde realmente foram!

E o dia de ser usada chegou! Com um medo enorme do desapego, me apeguei ainda mais em minha dona! Mais que vestir, me ajustei em seu corpo, endureci meu leve tecido e me transformei em uma armadura; meus botões apontados, meu zíper enfileirado, prontos para defendê-la de qualquer batalha. Envolvi cada detalhe meu em cada músculo do seu corpo, agasalhei cada centímetro de pele, cada pelo seu, aquecendo-a. Cheguei a ostentar minha marca, deixando minha presença marcada em cada local que passara. Enverguei-me em seu corpo, empinei seu bumbum, realcei sua cintura, envolvi e ressaltei seus seios. 

Enfeitei, aderecei, adornei, ornei, ornamentei toda a sua beleza, atraindo a atenção de todos, não para mim, mas para ela! Adotei sua forma, disfarcei particularidades, encobri minucias.

Fantasiei seus desejos. Seus anseio, por mim, foram mascarados - levemente inflei parte do vestido que recobria seu coração, não permitindo vê-lo disparado e intensifiquei a luz,refletida em seu rosto, evitando seu ruborescer.  

Não furtei em dissimular minha vontade: transformar-me em uma peça de desejo!

Na contagem regressiva desejei mais! Desejei vestir sua alma, acorrentar-me em seu corpo, costurar-em sua pele e ser para sempre dela. Pulamos 7 ondas, nos encharcamos de felicidade! Esperamos, juntas o nascer do sol.

No entanto, minha alegria durou pouco: fui esquecida molhada na mala! Fiquei dias abafada, sendo consumida por fungos, o cheiro de bolor deu lugar ao cheiro do perfume que ela usara e manchas esverdeadas tomaram conta do meu branco tecido.

Precisei ser lavada e enxaguada várias vezes. Fui mergulhada em águas químicas que corroeram minha fazenda. Minha trama se tornara meu drama. E este estava apenas começando: não cabia mais em minha dona - não pense que encolhi, não! Lutei bravamente contra todos - mantive minhas linhas, minhas dobras, meus arremates! Não permitir um desfiado, uma brecha, um furo se quer! Não fui eu! Ela sim, aumentar sua numeração. Fora meio número, mas o suficiente para eu não caber de tristeza!

Fui deixada em uma gaveta! Em pouco tempo estava no fundo, esquecida! Ali, recolhida em minha, mais nova, insignificância, pressenti que não resistiria ao inverno, pressenti meu fim: a sacola do desapego. Porém o sol brilhou para mim e fui resgatada do fundo daquela gaveta. O verão foi quente e em sua pele bronzeada, ela usou e abusou de mim. Senti que não comprimia seu corpo, muito pelo contrário, agora, deslizava gostosamente.

E, habitando seus cabides, acompanhei sua trajetória, não só em 2018 mas em vários anos de sua vida e alguns reveillons mais!

Desejo às minhas companheiras de gavetas e armários que  em 2018 seja usadas e amadas e, que se forem desapegadas, que sejam para um novo armário!


Crônica de Mara Débora


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